rua-direita rua-direita publicou: Atribulações de Uma Operadora de Caixa
Quando é preciso ir ao supermercado, talvez que a necessidade dos produtos, a pressa ditada por um ritmo de vida alucinante ou, porque não, uma certa falta de educação levem a ignorar o(a) operador(a) de caixa, ou mesmo a descarregar sobre a pessoa que se encontra ao serviço o cansaço e as frustrações pessoais. Quando a arrogância impuser um olhar por cima do ombro, como que a sugerir desdém, podia ser interessante treinar a observação e tentar perceber que tipo de pessoa ali está. Na verdade, é bem possível que se trate de alguém que queimou pestanas ao longo de intermináveis noites em busca de uma esforçada licenciatura.

É este o caso da personagem de «Atribulações de Uma Operadora de Caixa». Reimpresso em 2009, este livro de 148 páginas, editado pela Espuma dos Dias, descreve a história de Anna Sam, de 28 anos, licenciada em Literatura e a trabalhar há oito como caixa de um supermercado.

A linguagem que aprendeu na faculdade rege-se por códigos bastante distintos dos de barras, dotada de um automatismo pouco humanizante. Provavelmente por isso, a protagonista apela aos seus recursos interiores e ao cabo de poucos dias já diferencia os diversos géneros de clientes: fáceis, difíceis, bêbados, “espertinhos” (que trocam etiquetas para pagar menos ou passam à frente na fila), responsáveis, consumistas, “pechinchas” (adeptos incondicionais de todas as promoções), …Na prática, descobriu no fabuloso mundo de uma operadora de caixa uma oportunidade para realizar um curso de relações humanas em versão caseira. Pode dizer-se que ignorou o facto de a terem ignorado e aproveitou para se tornar numa expert em perfis psicológicos; “reciclou” os lisonjeios, os insultos, as tentativas de sedução, os cumprimentos, as antipatias e os desprezos, e colocou tudo num blogue, qual diário que haveria de transformar-se em livro que, por sua vez, se converteu num sucesso estrondoso, tendo sido impresso 19 vezes em França, onde vendeu mais de 100 mil exemplares. Mas não é só: há um projeto para uma comédia musical baseada nesta obra, bem como para uma variante em banda desenhada cómica, e os direitos para cinema foram já conseguidos.

Aqueles que pensam que não acontece nada no quotidiano de uma operadora de caixa desenganem-se! Efetivamente, o tapete rolante, o barulho ensurdecedor dos bips e as contas ao fim do dia não constituem apenas a melhor saída profissional que algumas pessoas arranjam, podendo servir para adquirir conhecimentos em áreas inimagináveis (como a do roubo) por vias insuspeitas, e também ser o mote para ensaiar a arte de desabafar, como sucede neste livro. A autora não escreve na primeira pessoa por entender que o que narra são episódios comuns a todos os que trabalham atrás de uma caixa de super ou hipermercado.

Dotada de ironia e humor q.b., esta selecção de textos engloba as perguntas mais habituais dos clientes, a análise de produtos que provocam algum transtorno (DVD pornográficos, pensos higiénicos, …), os preços psicológicos (acabados em 99), a experiência numa caixa de até dez unidades, as respostas a dar na entrevista de trabalho (ela escreve dirigindo-se sempre ao leitor como um potencial colega), entre muitos outros âmbitos.

Anna prestou atenção ao que viu, e ainda que se tenham esquecido de olhar para ela, ela não se esqueceu de olhar para todos e conta tudo em «Atribulações de Uma Operadora de Caixa».