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Início > Textos > Categoria > Literatura > Camilo e Flaubert, vistos por Agustina Bessa-Luís

Camilo e Flaubert, vistos por Agustina Bessa-Luís

Categoria: Literatura
Visitas: 91

No seu artigo intitulado «Riso e Castigo em Camilo Castelo Branco»[1], Agustina compara Camilo a Flaubert

1. «Em Camilo como nos grandes românticos carismáticos, o riso é uma espécie de intimidade consigo mesmo. Copista de si próprio, ele quase afere o destino de Bouvard et Pécuchet, que Flaubert teve como idiotas exemplares: os que, no fim de desafiar a sabedoria em todas as suas disciplinas, descobrem que não entendem absolutamente nada, nem de pedagogia, filosofia e até veterinária. O saber precisa de ser visto com a idiotia que ele próprio comporta, com o jogo de certezas que uma época tem por inevitáveis, mas por permanentes. Um mundo sem idiotas é um mundo saturado de falsa dignidade. Amar implica distinguir sem nos isolarmos na preferência.


Tanto o homem reconhece a estupidez que na vida se torna intolerável, como Bouvard et Pécuchet descobrem um dia. A ideia é genial. Flaubert sabe que afinal a usual cretinice é uma forma faustiana de viver o enigma. Esperar do mundo um engenho e uma arte sublimes é outra maneira da danação de fausto. A inteligência é devastadora se não mover dificilmente no meio da cândida estupidez. O homem destrói-se à força de segregar da sua lucidez toda a idiotice que afinal, protege mais do que arruína. Camilo, como Flaubert, teve desde cedo essa visão duma biblioteca feita para não ser entendida. Achou o mundo vulnerável, a cultura uma fraude, e o intelectual depravado. E riu-se. Este riso, nascido como um escudo, para invalidar a força do seu desencanto perante a vulgaridade dos homens, esse riso surtiu efeito enquanto a juventude o justificou. Depois tornou-se uma má consciência, e a sociedade não lhe perdoou»[2].


2. «O que não adivinha no desprezo de Camilo, tal como no de Flaubert, pelo apetite das conclusões, que o homem transforma numa "estéril mania" é uma espécie de ferocidade; pode-se dizer que uma experiência fatal culmina com essa sátira. Mais ainda: faz da sátira a sua única saída para o mundo. Na vida de Flaubert houve sem dúvida um caso triste que o levou a escrever a Bovary- Bovary-Flaubert não se limita a ser uma pequena provinciana desiludida da insignificância dos seus amantes. Flaubert mente pela boca de Ema Bovary. Ela morre para não dizer que muito amou e que um grande amor não é exemplar, é apenas sinistro devorador de todas as compaixões devidas à precária sageza dos homens, à sua estupidez, em suma.
Camilo mente igualmente, mas mente pelo riso. O riso é o seu viático, a sua asa protectora»[3].

3. «Aqui, no tresmalho das linhas fundamentais para se entender Camilo, é que vemos quando ele emparceirou com Flaubert e chegou ao limite de Bouvard e Pécuchet. "Vi, e reneguei a vocação" diz Camilo. "Aborreci os livros… esqueci o que sabia; reabilitei-me perante o mundo, com documentos irrefragáveis da ignorância supina; e finalmente, fiz-me homem, à feição do Criador, que não veio a este mundo com Laplace e o Dicionário da Conversação debaixo do seu divino braço." Convenhamos que Camilo é um formidável produtor de alegorias. E "a alegoria é salgada", como ele diz»[4].


4. «Quando eu me propus observar o problema da feminilidade na vida de Camilo, não quis referir-me à percentagem de relações com mulheres que o escritor autoriza à sua carreira profissional. Diz o editor de Flaubert, em carta escrita a um amigo e receando pela produção literária do romancista, nessa altura ocupado com novos amores: "Ele devia saber que o tinteiro é a vagina do escritor". A boutade é excelente porque a verdade é justa. Na realidade, o excedente dum temperamento criador exprime-se pela obra e não pela sua intriga pessoal»[5].

5. «Eugénia morreu como Salambô, por ter querido vencer os poderes da Lua e diminuído o amor dum homem até os direitos só de um escravo»[6].


Na primeira citação, subjacente à inteligência, está a consciência de que o saber e a estupidez estão muito próximos - «O saber precisa de ser visto com a idiotia que ele próprio comporta», «A inteligência é devastadora se não mover dificilmente no meio da cândida estupidez». Camilo e Flaubert assumem, em Literatura, uma mesma posição: o melhor é não concluir (sendo esta ideia retomada no segundo excerto: « no desprezo de Camilo, tal como no de Flaubert, pelo apetite das conclusões») e deixar o mistério pairar no ar: «Camilo, como Flaubert, teve desde cedo essa visão duma biblioteca feita para não ser entendida».

Na segunda citação, o riso reveste-se de elementos paradoxais. Por um lado, remete para a necessidade de controlar os nossos sentimentos que nem sempre são um bom exemplo: «Ela morre para não dizer que muito amou e que um grande amor não é exemplar» ; por outro lado, tal como a sátira, o riso é a única salvação: «O riso é o seu viático, a sua asa protectora», e «faz da sátira a sua única saída para o mundo».
Em Madame Bovary como em Vale Abraão, o riso torna-se digno de relevo, sendo que no primeiro romance, o cego ri. O riso do cego é paradoxal: representa o conhecimento (do terrível destino de Ema) e a disformidade (a cegueira).

Em Vale Abraão, podemos considerar Ritinha a personagem 'equivalente' ao cego; a sabedoria de Ritinha é instintiva e contrasta com a sua deformidade (Ritinha é muda).
O riso, no sentido paradoxal (sabedoria/estupidez) que Agustina lhe atribui aquando da comparação entre Camilo e Flaubert estende-se a Vale Abraão: como veremos mais adiante, o riso de Ema, quando é apresentada às irmãs Melo, assemelha-
-se ao de um animal.
Mais tarde, Ema provoca os ciúmes de Branca quando Nelson a contempla, Branca fica furiosa e Ema ri-se.
Para além de Madame Bovary, outros romances de Flaubert são referidos nos excertos acima transcritos: Bouvard et Pécuchet (primeira, segunda e terceira citações), Salammbô (quinta citação).
Camilo e Flaubert são vistos como parceiros «ele emparceirou com Flaubert e chegou ao limite de Bouvard e Pécuchet» (terceira citação). O «problema da feminilidade» (quarta citação) torna-se relevante quer para Camilo quer para Flaubert…

[1] Cf. «Riso e Castigo em Camilo Castelo Branco» in BESSA-LUÍS, A. [1994: 53-61], Camilo, Génio e Figura.
[2] Cf. BESSA-LUÍS, a. [1994: 56-57], Camilo, Génio e Figura.
[3] Ibidem. O negrito é nosso.
[4] Idem, p. 60.
[5] Idem, p. 64.
[6] Idem, p.67.


Maria Alzira Teixeira Pereira de Moura Guedes

Título: Camilo e Flaubert, vistos por Agustina Bessa-Luís

Autor: Maria Alzira Guedes (todos os textos)

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Martelos e marrettas

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Tema: Ferramentas
Martelos e marrettas\"Rua
Os martelos e as marretas são, digamos assim, da mesma família. As marretas poderiam apelidar-se de “martelos com cauda”. Elas são bastante mais robustas e mantêm as devidas distâncias: o cabo é maior.

Ambos constituem, na sua génese, amplificadores de força destinados a converter o trabalho mecânico em energia cinética e pressão.

Com origem no latim medieval martellu, o martelo é um instrumento utilizado para “cacetear” objectos, com propósitos vários, pelo que o seu uso perpassa áreas como o Direito, a medicina, a carpintaria, a indústria pesada, a escultura, o desporto, as manifestações culturais, etcétera, variando, naturalmente, de formas, tamanhos e materiais de composição.

A diversidade dos martelos é, realmente, espantosa. O mascoto, por exemplo, é um martelo grande empregue no fabrico de moedas. Com a crise económica que assola o mundo actualmente, já se imaginam os governantes, a par dos banqueiros, de martelo em punho para que não falte nada às populações…

Há também o marrão que, mais do que o “papa-livros” que tira boas notas a tudo, constitui um grande martelo de ferro, adequado para partir pedra. Sempre poupa trabalho à pobre água mole…

O martelo de cozinha serve para amaciar carne. Daquela que se vai preparar, claro está, e não da de quem aparecer no entretanto para nos martelar a paciência…!

Já no âmbito desportivo, o lançamento do martelo representa uma das provas olímpicas, tendo sido recentemente adoptado na modalidade feminina. Imagine-se se, em vez do martelo, se lançasse a marreta… seria, certamente, mesmo sem juiz nem tribunal, a martelada que sentenciaria a sorte, ou melhor, o azar de alguém!

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