Antes que seja tarde 1º Capitulo
William Shakespeare
26 De Maio de 2005
“Sorri quando uma lágrima abate a barreira da tristeza, ri quando a raiva te manda derrubar tudo a tua volta e gritar… grita em silêncio… continua mudo ate que percebas que a tua vida tem de continuar em frente. E eu vou ausentar-me da tua existência. Afonso”
O fumo do cigarro sai dançando no ar, ao sabor da brisa nocturna, sob o alpendre de madeira maciça. Acaba por desaparecer, acaba a sua dança e funde-se com o ar expirado de Rafael. O cigarro desce até á boca, abraça os lábios secos e gretados, alimenta o vício da paixão iluminando a chama, liberta-se finalmente da boca, deixa cair a cinza na erva molhada e o fumo é largado pela sua boca.
Uma luz acende-se na sua retaguarda. Uma luz fraca, como a das estrelas naquela noite enevoada sob a lua crescente quase extinta. Sente a porta ranger ao abrir, sente os passos e a respiração de Mafalda:
-Rafael vem para dentro, vá lá! Está muito frio! – Pede-lhe debaixo do roupão vermelho apertando-o com as suas mãos frias enquanto tremia de frio.
- Volta para dentro! Eu já vou. É só acabar o cigarro. – Diz-lhe levando o cigarro novamente á sua boca.
A porta volta a ranger. Pouco depois a luz delicada perde vida e o nevoeiro apodera-se do alpendre. Rafael larga o cigarro finalmente no meio da erva mas deixa-se ficar no alpendre. O frio congelante começava a apoderar-se do corpo imóvel, do rosto morno de Rafael, acabando por congelar uma lagrima tímida que escapou á barreira de força da sua mente. A gota de água escorreu-lhe pela face, derramou-se no chão de madeira do alpendre sem que Rafael a pudesse limpar. Este olha para baixo, fixa os seus olhos verdes vivos na minúscula poça de água que penetrava na madeira, deixando-se levar pelas emoções e quebrando a já frágil barreira, que acabava de se derrubar e o levam a deitar-se para o chão, gritando silenciosamente na sua mente.
Dentro de casa percorria o calor que fugia da lareira, Mafalda desligara a luz mas permanecia acordada sob os reflexos da luz da noite. Permanecia deitada na cama, pensativa, com o roupão vermelho deslizando sob os lençóis da cama. Mafalda olha pela janela onde vê no nevoeiro a frieza daquela noite, era como um manto branco que tapava o céu e as estrelas. Voltou a acender a luz, olhou de novo para a janela mas já não viu Rafael.
O dia acorda timidamente, assustando o manto branco que se ia dissolvendo, dando espaço para que o calor dos primeiros raios de sol viessem acordar Rafael. Sente-se como se estivesse congelado por dentro, parecia querer deter o tempo, impossível de parar…
O calor começa a tornar-se intenso ainda que a dois meses do verão. Era quase impossível sentir aquela leve brisa fresca que Afonso sentia. Movia-se pausadamente na minúscula sacada do hospital. Aguardava novidades, alguma notícia que já não o era, mas mesmo assim queria ouvir alguém que lhe ditasse a sua sentença. Estava internado há uns dias, mas para Afonso pareciam mais semanas longas, longe da sua liberdade, da sua rotina, da sua vida igual a tantas outras. Comparava o hospital a uma prisão, apenas lhe faltavam as grades, dali não via o sol aos quadradinhos mas via sim o sol a desvanecer para sempre. Estava ali apenas em corpo, este pedia um remédio, uma cura que o livrasse da doença… mas tinha de estar ali a pagar pelos crimes consumados pela alma. Chegara a hora da cobrança…
As escadas reagem ao peso dos passos duros, rangendo a cada passada. O roupão escarlate desliza levemente por cada degrau ate chegar ao fim a rastejar pelo chão. Mafalda acordara perto de meio-dia. Ainda não despertara totalmente, acordara muito indisposta, nunca se sentira assim e ficara pensativa da razão por qual estava assim, não era normal e isso preocupava-a.
Desiste do seu dia, de fazer o que tinha planeado, desiste do dia já a meio e volta para o seu quarto escuro, volta ao seu sono solitário. Apenas queria acordar num novo dia.
Rafael vagueava pela incerteza, pela mágoa que tinha dentro de si. Procurava uma saída, uma meta, um fim do seu estado. Principalmente respostas. Parecia um vagabundo. Tinha a barba por fazer há diversos dias, a roupa encolhida, umas olheiras até aos pés e o cabelo caia-lhe para os olhos… Estava um trapo do corpo até á alma. Recolhe o telemóvel do seu bolso esquerdo devagar. Nota que tinha recebido uma mensagem de Afonso há cerca de dez minutos.
“Estou no café do André. Vem cá ter, precisamos de falar. Não me disseste nada desde ontem. Estou muito preocupado contigo. Afinal de contas sou teu irmão… Vou ficar há tua espera.”
Rafael tenta situar-se. Estava a andar precisamente na direcção contrária ao do local do encontro. Ainda estava a uns quinze minutos do café e ao seu passo lento e pesado ia demorar mais do dobro. Guarda o telemóvel novamente no bolso esquerdo sem responder. Volta vaguear mas agora com um novo rumo: conseguir respostas que ainda não obtivera, que lhe matavam a alma e o coração. Todo o seu passado estava cheio de nós, que queria desfazer, respostas às perguntas perdidas no tempo.
Afonso esperava sentado à sombra do enorme chapéu-de-sol.
Tirou um cigarro do maço que tinha no bolso, acendeu-o e saboreou-o enquanto esperava por Rafael. Estava preocupado com ele. Nunca tiveram uma relação de irmãos íntimos. Muito pelo contrário, era uma relação muito distante mas a vida parece mudar esse rumo apesar de já parecer tarde demais…
Rafael chega finalmente debaixo do calor abrasador que se fazia sentir.
-Demoras-te muito! Não estava à espera que essa tua caminhada fosse tão longa e tão demorada. - Diz Afonso ao chegar Rafael enquanto este puxava uma cadeira para se sentar.
-Desculpa a demora! – Retorquiu-lhe cansado, faminto e sem forças.
-Aqui podemos falar á vontade. A esta hora ninguém se atreve a estar aqui na esplanada sobre este calor abrasador nem mesmo debaixo destes chapéus-de-sol. Bem, vamos passar ao que interessa: porque é que não me respondeste às mensagens. Eu fiquei preocupado… - fala Afonso dando mais um bafo no cigarro expelindo o fumo pelo nariz.
-Afonso a tua mensagem levou-me ao fundo. Não tenho rumo na minha vida. Estou desempregado, eu a Mafalda vamos de mal a pior e ainda recebo por aquela tua mensagem… nem sei em que pensar… Que se passa contigo? – Pergunta-lhe preocupado distendendo as pernas e juntando os braços junto ao peito olhando fixamente para os olhos verde-mar de Afonso.
- Não devo durar muito tempo… passei por vários médicos… foi-me detetado um cancro nos pulmões em nível já avançado. Andei em quimioterapia e em radioterapia mas segundo alguns a minha única maneira de me livrar disto é… Morrer. - Conta Afonso, pausadamente, com calma esperando a reacção do irmão.
Rafael fica a olhar para Afonso. Lembra-se de quando eram pequenos, pelo que passaram juntos e por aquilo que os separou… mas agora sentia um vazio enorme. Era como uma avalanche que o estava a afectar e o estava a sufocar. Estava cada vez mais possuído pela dor da alma que crescia a cada momento.
-Rafael, ouve-me! Enquanto eu ca estiver vou fazer os possíveis para te ajudar… Mas se não tens coragem para lutar contra tudo, nunca conseguirás dar a volta à situação… não deves, não podes ter medo! – Diz-lhe seriamente olhando-o assim cabisbaixo, sem forças nem reacção – Posso não ter sido um irmão muito presente, muita coisa nos separou mas estou disposto a fazer de tudo para que tu fiques bem…
-E tu? – Pergunta Rafael com as suas poucas forças.
-Eu vou morrer… todos morremos! Eu apenas vou mais cedo!
Rafael levanta-se e vai-se embora sem nenhuma reacção. Afonso permaneceu imóvel. Era difícil para os dois. Parecia ser mais difícil para Rafael do que para Afonso. Sentia-se sereno, tira mais um cigarro do maço e volta a levá-lo aos lábios.
- Um café, por favor. – Pediu ele à empregada.
O cigarro já ia a meio. Olhava fixamente para o cigarro na sua mão. Pensava do que teria sido a sua vida se não tivesse feito muita coisa. Mas ninguém pode dizer se podia ser melhor ou pior. Apenas acredita numa coisa seguiu o seu caminho traçado: o seu destino!
Comentários ( 2 ) recentes
- Ruca
22-12-2013 às 11:46:01Brutal!!!
¬ Responder - sandra
03-02-2013 às 19:04:12o mestre da inspiracao , muito forte, fotissssimo, adorei!
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